
Outro dia, fiz com um amigo uma longa caminhada. Num dia de muito sol, saímos da Paulista, descemos até a Bela Vista, Glicério e cruzamos o Tamanduateí, o Gasômetro e andamos pelo Brás, Belenzinho e Pari.
À primeira vista, não parece um roteiro muito inspirador. Mas, ao contrário, ele permite ver a cara da cidade, para o bem e para o mal:
1. A diversidade
Um balcão num bar no meio do caminho. Dois homens conversam animadamente. Em árabe. Na mesa ao lado, duas mulheres e um homem falam mais baixo. Parecem discutir coisas importantes. Em coreano, suponho. O atendente do bar, um cearense simpático, grita por cima dos clientes até a cozinha: “Ô, seu pau de amarrar bode, vem cobrar a conta dos meninos!”.

diante. Ver gente diferente me faz pensar na identidade. A da cidade e a minha própria.
2. Viadutos e pontes. Como é difícil para um pedestre cruzar os obstáculos da cidade
A várzea do rio sempre foi um obstáculo tremendo. Da colina histórica, até um século atrás, a estradinha seguia até o Brás e esse espaço vazio era uma forma de respeito ao rio, à várzea, aos ciclos de cheia.

A cidade tentou domar esse pedaço e claramente fracassou. Cruzar a Avenida do Estado não é para qualquer um. O viaduto 25 de Março exige coragem para enfrentar os carros que trafegam quase na altura da orelha e a sensação de confinamento e insegurança.
Os trilhos do trem são outra cicatriz na cidade. Cruzá-los também é um exercício de paciência. À minúscula calçada, foi acrescentada uma faixa extra. Meio desprotegida, a faixa é um alento e revela que alguém em algum departamento da prefeitura alguém fez o exercício de se colocar no lugar do pedestre.

O último obstáculo são as ruas. Cada cruzamento gera uma tensão. Os motoristas parecem nunca ter ouvido falar em faixa de pedestre. Em muitos deles, o mesmo órgão que fez a tal faixa extra, parece desconhecer aqueles homenzinhos luminosos vermelhos e verdes, que tanto ajudam a quem precisa cruzar uma rua.
3. Os marcos visuais. A orientação no espaço.

Toda cidade têm seus marcos visuais. O influente pesquisador do MIT Kevin Lynch disse ainda na década de 1960 que um ambiente legível pode reforçar “a profundidade e a intensidade potenciais da experiência humana”.

A julgar pela legibilidade do ambiente urbano, a qualidade da experiência nesse lado da cidade, talvez deixe a desejar. Mas há exceções. Uma escola centenária surge e dá sentido à desordem. Os templos religiosos parecem ser os elementos mais contundentes na paisagem. Há os mais modestos, em térreos de antigas lojas, e os mais ambiciosos, desde as várias igrejas católicas e uma mesquita até o polêmico Templo de Salomão, que ocupa quase um quarteirão inteiro e produz surpresas como as oliveiras que devem ter sido trazidas não sei de onde e criam um ambiente quase bíblico, por trás das grades e sob o olhar de muitos seguranças.
4. Como árvores fazem falta!
O centro-leste da cidade é o lugar mais quente do município. São quase 10 graus a mais do que em outras regiões. É fácil entender o porquê: não há árvores. As praças são poucas e as ruas são áridas.
O que parece intuitivo, na verdade, já foi provado através de estudos: árvores abaixam a temperatura e melhoram a qualidade do ar. Não faz sentido viver diariamente em um lugar tão árido sem fazer algo tão simples quanto plantar árvores.

5. O comércio e a urbanidade
Há multidões que entram e saem das lojas. Nas ruas laterais, somem as vitrines e aparece gente trabalhando com tecidos; atacadistas expõem pilhas e pilhas de mercadorias, há verdadeiras fábricas em garagens. Numa delas, um menino de uns dez anos dorme confortavelmente em cima dos tecidos. O homem ao lado – o pai? – parece velar o sono da criança, enquanto mexe com uma calculadora.
Tradicionalmente, comerciantes cuidam das calçadas em frente a suas lojas, mantém o lugar limpo e seguro. Algumas lojas oferecem uma ou outra “gentileza urbana”, mas, na média, o pessoal não parece muito interessado em gastar dinheiro, ou energia com o espaço público.

6. A “andabilidade” e a “sentabilidade” de São Paulo não andam nada boas
Nós queremos boas calçadas. Precisamos de boas calçadas. Mas quem anda a pé, também precisa sentar, por cansaço ou para mandar uma mensagem no telefone ou simplesmente para ver as pessoas passando (a melhor coisa que a gente pode fazer na rua é ver gente).

As praças seriam o lugar clássico para isso. A questão é que há poucas praças e elas não são exatamente convidativas. O Largo da Concórdia tem até bancos com encosto, uma raridade em São Paulo, mas eles estão expostos ao sol inclemente e imersos numa cacofonia sonora e visual. Nenhuma sombrinha. No resto do caminho, bancos de concreto em uma pracinha, muretas improvisadas, uma ou outra mesa de bar. Será que é preciso pagar para sentar?

7. No final da caminhada, é sempre bom encontrar um lugarzinho especial.
Gente que trabalha e compra também precisa comer. Esse não é um lugar de cafés parisienses, mesinhas charmosas, lojinhas hipster. Mas há pérolas a serem exploradas. No Carlinhos, por exemplo, o salão é agradável, a conversa é alta e o arais é maravilhoso.
Sentado, cansado, alimentado, penso em tanta gente que vi, em como a cidade é complexa, em como a beleza é relativa. E como andar por aí faz bem.
Se você gosta de andar pela cidade e refletir sobre o que vê, tente esses posts: o ponto de vista de quem pegou seis meios de transportes em um dia e Grandes Caminhantes Urbanos.